A privatização da ANA ao grupo francês Vinci foi anunciada em 27 de dezembro de 2012 e concluída em setembro de 2013, num processo controverso que motivou chamar os intervenientes a prestar esclarecimentos no parlamento mais uma década depois.
O grupo parlamentar do PCP tinha apresentado uma proposta para criação de uma Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar, “tendo por objeto apurar as responsabilidades políticas e administrativas dos governos e dos Conselhos de Administração da ANA Aeroportos que envolveram a privatização da empresa e as suas implicações para o Estado e a gestão da rede aeroportuária nacional”, mas foi rejeitada com os votos contra do PSD, PS e CDS e a abstenção do Chega.
Por requerimento do PCP, são agora chamados ao parlamento o antigo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, o antigo ministro das Finanças Victor Gaspar, a antiga secretária de Estado do Tesouro Maria Luís Albuquerque, o antigo secretário de Estado das Infraestruturas Sérgio Monteiro, o presidente do Conselho de Administração da ANA, José Luís Arnaut, o presidente executivo da empresa, Thierry Ligonnière, e as organizações representativas dos trabalhadores da gestora aeroportuária.
Já o PSD requereu as audições dos ex-ministros das Infraestruturas socialistas Pedro Marques, Pedro Nuno Santos e João Galamba, do presidente do Tribunal de Contas, José Tavares, do juiz conselheiro relator do relatório de auditoria sobre a privatização da ANA, José Manuel Quelhas, e da juíza Maria José Brochado, bem como dos ex-presidentes do Conselho de Administração da Parpública, Joaquim Pais Jorge e Pedro Ferreira Pinto.
2012
26 de janeiro – Governo anuncia que quer lançar o processo de privatização da ANA – Aeroportos de Portugal durante o primeiro semestre.
11 de julho – O secretário de Estado dos Transportes, Sérgio Monteiro, diz que o Governo tem em cima da mesa três modelos alternativos para definir o objeto da concessão da ANA e que a privatização deverá ser lançada no início de setembro. Os três modelos são: ou a totalidade dos aeroportos é concessionada; ou a concessão de aeroportos comerciais, por um lado, e aeroportos de serviço público ou não viáveis comercialmente, por outro; ou até um modelo misto, em que há a obrigação de gerir os aeroportos como um todo num primeiro momento e, num segundo momento, a obrigatoriedade de alienação de alguns aeroportos.
30 de agosto – O Conselho de Ministros aprova o processo de privatização da ANA, mediante a alienação das ações representativas de até 100% do capital social da empresa, através de uma operação de venda direta.
03 de outubro – Governo anuncia que a concessão da ANA a privados foi aceite pela ‘troika’, mas falta aprovação do Eurostat, uma vez que o Governo pretende que a privatização da gestora aeroportuária seja precedida pela venda da concessão do serviço aeroportuário, um mecanismo com que o Governo pretende cumprir a meta do défice nos 5% do PIB.
Normalmente, a receita das privatizações afeta diretamente a dívida pública e não o défice.
26 de outubro – A Parpública anuncia ter recebido oito propostas para a compra da Ana.
08 de novembro – Governo aprova caderno de encargos para a privatização, que “segue a mesma metodologia de trabalho” aplicada nas privatizações da EDP, da REN ou dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Entre os principais critérios de seleção estão o “plano estratégico a apresentar” pelos candidatos, mas também “a manutenção do ‘hub’ de Lisboa”.
15 de novembro – Caderno de encargos é publicado e estabelece que os interessados deverão ser operadores ou maiores acionistas de um aeroporto com um tráfego superior a 10 milhões de passageiros, ou “o operador ou maior acionista e controlador de operador de uma rede crítica de transportes com receitas superiores a 400 milhões de euros por ano”.
O potencial investidor, que pode concorrer individualmente ou em agrupamento, deve ainda possuir capitais próprios ou ativos sobre gestão num valor superior a 2 mil milhões de euros por referência aos últimos documentos de prestação de contas auditados.
No mesmo dia, o Conselho de Ministros aprova a passagem dos consórcios Blink, Eama, Fraport/IFM, Vinci e Zurich à segunda fase da privatização.
17 de novembro – O PS anuncia que quer suspender os processos previstos pelo governo de privatização de empresas, ou de alienação de participações sociais do Estado, até que seja definido um regime jurídico que salvaguarde os interesses estratégicos nacionais.
23 de novembro – O coordenador do Bloco de Esquerda, João Semedo, critica o Governo por ter nomeado seu assessor na privatização da TAP o ex-ministro José Luís Arnaut, advogado que também assessora a empresa primeira classificada para a privatização da ANA.
No mesmo dia, José Luís Arnaut rejeita as acusações de favorecimento feitas pelo BE em relação às privatizações da TAP e da ANA e classificou a insinuação de “infundada e mentirosa”.
06 de dezembro – A agência noticiosa Bloomberg avança que a oferta mais alta na primeira fase de privatização da ANA foi a do grupo francês Vinci e atingiu 2.500 milhões de euros.
11 de dezembro – O Governo aprova, em Conselho de Ministros, o contrato de concessão dos aeroportos entre o Estado português e a ANA, por 50 anos, que abrange os aeroportos de Lisboa, Faro, Porto, Ponta Delgada, Santa Maria, da Horta, Flores e o designado terminal civil de Beja. O contrato estipula que, no imediato, a concessionária tem de pagar ao Estado 800 milhões de euros e um adicional de 400 milhões liquidado até oito meses após a assinatura do contrato.
Fica também prevista a apresentação de um plano estratégico a cada cinco anos, discutido com o regulador, com a empresa de navegação aérea e com o Ministério da Defesa.
12 de dezembro – O PS entrega um requerimento no parlamento para ser votada a suspensão da privatização da ANA onde também requer a audição dos intervenientes na venda da concessionária aeroportuária e da TAP.
No mesmo dia, os partidos da oposição, toda a esquerda parlamentar, juntam-se para acusar o Governo de falta de transparência nos processos de privatização da ANA e da TAP, o que o PSD nega.
13 de dezembro – O Governo escolhe a comissão de acompanhamento à privatização da ANA, presidida por António Sousa, antigo presidente da CGD e dono do fundo ECS Capital.
14 de dezembro – Data limite para os candidatos à privatização da ANA entregarem as propostas vinculativas para a gestora aeroportuária.
No mesmo dia o parlamento rejeita um projeto de resolução do PS que recomendava ao Governo a suspensão da privatização da ANA, com os votos contra do PSD e do CDS-PP.
A Parpública informa que recebeu “quatro propostas vinculativas” para a compra da ANA: os franceses da Vinci, os suiços Flughafen Zurich, a EMEA, consórcio liderado pelos argrentinos da Corporacion America, e os alemães da Fraport. Pelo caminho, fica o consórcio liderado pela Odinsa que integrava a portuguesa Mota-Engil.
19 de dezembro – É publicado um despacho do Ministério das Finanças, liderado por Vítor Gaspar, que estabelece que o comprador da ANA tem que pagar uma prestação de 100 milhões de euros no momento da celebração dos instrumentos jurídicos relativos à venda da concessionária dos aeroportos portugueses.
20 de dezembro – Os trabalhadores da ANA exigem a suspensão do processo de privatização da gestora aeroportuária, à semelhança do que o governo decidiu para a TAP, considerando que foram postos em causa pressupostos estratégicos para o setor da aviação civil.
27 de dezembro – Os franceses da Vinci ganham a corrida à privatização da empresa concessionária de oito aeroportos portugueses, com a proposta de pagar 3.080 milhões de euros pela aquisição de 95% do capital da ANA, elevando para 6.400 milhões de euros o encaixe do Estado com o programa de privatizações.
O então líder da bancada parlamentar do PSD e atual primeiro-ministro, Luís Montenegro, declarou que o partido estava “satisfeito” com o negócio, salientando que salvaguarda o interesse público do Estado português.
28 de dezembro – O primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, diz que o retorno alcançado com a privatização de 95% do capital da ANA “é o melhor” alcançado até então.
29 de dezembro – O Governo concede um prazo máximo de nove meses para que a Vinci pague a totalidade dos 3.080 milhões de euros oferecidos pela gestora dos aeroportos portugueses.
2013
04 de janeiro – É publicado um despacho do Ministério das Finanças que determina que o grupo Vinci tem que entregar à Parpública uma garantia bancária de 2.980 milhões de euros, equivalente à diferença entre o montante a pagar pela ANA (3.080 milhões de euros) e a prestação inicial de 100 milhões de euros.
O despacho acrescenta que o grupo francês pode substituir a garantia por um depósito bancário em garantia a favor da Parpública, “apenas no caso de os respetivos termos serem acordados com a Parpública e homologados” pelo Governo.
06 de fevereiro – O Conselho de Prevenção da Corrupção afirma que as comissões de acompanhamento à reprivatização da TAP e à privatização da ANA foram constituídas com “atraso”, recomendando que passem a ser nomeadas no início dos processos.
21 de fevereiro – O Governo formaliza o acordo para a privatização da ANA à Vinci.
15 de março – O Eurostat chumba a possibilidade da receita de concessão da ANA abater ao défice de 2012, justificando que esta operação não gerou valor adicional e que já existiam leis que enquadravam a concessão.
11 de junho – A Comissão Europeia aprova a aquisição da ANA pela Vinci, depois de concluir que a operação de privatização, prevista no programa de assistência financeira, não viola regras comunitárias de concorrência.
17 de setembro – A venda da ANA à Vinci é concluída, com o pagamento final de 1.400 milhões de euros.
09 de outubro – A Oferta Pública de Venda (OPV) de ações da ANA reservada aos trabalhadores da empresa, feita no âmbito da privatização, resulta na venda de 9.770 ações e gera um encaixe de 261.445,20 euros, numa operação que teve como intermediário financeiro o Banco Espírito Santo de Investimento (BESI).
2014
14 de março – A comissão de acompanhamento da privatização considera que faltou uma avaliação prévia independente da empresa vendida ao grupo francês por 3.080 milhões de euros.
09 de julho – O membro da comissão de acompanhamento da privatização Amado da Silva, afirma, no parlamento, que a comissão foi surpreendida pelo grande aumento de valor nas propostas finais à privatização da concessionária, tendo concluído que se devia à diminuição do risco no novo contrato.
Na mesma ocasião, o PS denuncia que o mesmo escritório de advogados que trabalhou como assessor jurídico do grupo Vinci, no âmbito da privatização da ANA, estava em paralelo a assessorar o Estado no processo de venda da TAP, sem identificar o escritório em causa.
Também ouvido no parlamento, o presidente da comissão de acompanhamento, António de Sousa, afirma que os contribuintes foram defendidos no processo, “mas os consumidores podem não o vir a ser”.
2016
23 de novembro – Já com um novo governo liderado pelo socialista António Costa, o secretário de Estado das Infraestruturas, Guilherme W. d’Oliveira Martins, considera que a subida das taxas aeroportuárias decorre da privatização da ANA realizada pelo executivo anterior e que resultou “num grande negócio para os privados”.
2018
10 de outubro – A Comissão de Orçamento e Finanças aprova um requerimento apresentado pelo PS para a realização de uma auditoria, pelo Tribunal de Contas, sobre o processo de privatização da ANA.
2023
28 de dezembro – O governo dá 120 dias à ANA para apresentar projetos para o cumprimento das obrigações específicas de desenvolvimento no aeroporto de Lisboa, cujas obras têm de estar concluídas até 2027.
O então secretário de Estado Adjunto e das Infraestruturas, Frederico Francisco, apontou que o governo não estava a obrigar a ANA a fazer nada que ela não estivesse já obrigada a fazer.
A Resolução do Conselho de Ministros refere que o investimento da Vinci no Aeroporto Humberto Delgado (AHD), em Lisboa, está 19% abaixo do previsto pela multinacional francesa aquando da privatização da ANA, em 2012.
2024
05 de janeiro – O Tribunal de Contas conclui que a privatização da ANA, ocorrida em 2013, não salvaguardou o interesse público, por incumprimento dos seus objetivos, como o de minimizar a exposição do Estado aos riscos de execução.
O TdC concluiu também “não ter sido maximizado o encaixe financeiro resultante da alienação das ações representativas do capital social da ANA” e “não se ter verificado o reforço da posição competitiva, do crescimento e da eficiência da ANA, em benefício do setor da aviação civil portuguesa, da economia nacional e dos utilizadores e utentes das estruturas aeroportuárias geridas pela ANA”.
A entidade concluiu que a privatização desrespeitou a lei, por ter sido feita sem avaliação prévia e sem cálculo do preço base, requisitos que asseguravam maior transparência e concorrência.
De acordo com o relatório de auditoria do TdC à privatização da ANA, a empresa veio a ser objeto de avaliação pelo BIG, mas o respetivo relatório é de 21 de dezembro de 2012, quando o processo de privatização tinha sido iniciado em setembro e aprovado em 29 de outubro, “não se tratando, por isso, da avaliação prévia legalmente exigida”.
Para o TdC, a “urgência em concluir a privatização fez iniciar e aprovar o respetivo processo sem todas as condições necessárias à sua regularidade, transparência e equidade (igualdade de oportunidade para todos os potenciais investidores), bem como à maximização do seu encaixe financeiro”.
Entre aquelas condições em falta, apontou o TdC, estiveram o quadro jurídico geral da concessão, a constituição de uma comissão especial de acompanhamento ao processo, a celebração dos contratos de concessão, a avaliação da ANA, a plena titularidade dos terrenos afetos à concessão (da Câmara Municipal de Lisboa) e a integração dos aeroportos da Madeira.
O TdC apontou ainda que “o Estado foi lento a aprovar o ‘regime de salvaguarda de ativos estratégicos essenciais para garantir a defesa e segurança nacional e a segurança de aprovisionamento do país em serviços fundamentais para o interesse nacional’, mas lesto a promover a execução do processo de privatização da ANA sem esse respaldo legislativo”.
Para aquela instituição, o Estado decidiu a venda integral da ANA, “em contexto adverso (com urgência, em situação recessiva), enquanto a maioria dos países da União Europeia manteve participação no capital social das entidades gestoras aeroportuárias”.
O TdC realçou ainda que não foi apresentada evidência de outra fundamentação para o governo de então ter decidido deixar de ter participação acionista da ANA “que não a de pretender maximizar o encaixe financeiro, a curto prazo e em contexto adverso, tendo, para isso, colocado os aeroportos do país sob gestão de uma única empresa privada”.
“Tal decisão, ao contrário do declarado pelo governo, aportou risco material, designadamente para a regulação do setor, dado o contexto de monopólio em que a ANA opera”, sublinhou o tribunal.
O TdC considerou ainda que a oferta da Vinci à compra da ANA foi sobreavaliada, não havendo “evidência robusta” de ter apresentado a melhor proposta técnica, e que o Estado privilegiou o encaixe financeiro no curto prazo.
Conforme refere o relatório do juiz conselheiro José Manuel Quelhas, a proposta vinculativa da Vinci previa 3.080 milhões de euros sobre o valor da empresa, superando em 580 milhões de euros a sua própria oferta não vinculativa (2.500 milhões), “não tendo sido entregue evidência dos fundamentos para a alteração das propostas”.
O TdC cita também o relatório final da comissão especial de acompanhamento da privatização que, em 22 de janeiro de 2014, refere que, “no que respeita ao desenvolvimento estratégico da ANA, […] os elementos disponíveis não permitem concluir de forma clara e inequívoca pela superioridade da Proposta da Vinci”.
Para o TdC, “o Estado privilegiou o potencial encaixe financeiro com a venda da ANA, no curto prazo, em detrimento do equilíbrio na partilha de rendimentos com a concessão de serviço público aeroportuário no longo prazo”.
O tribunal destacou ainda que, tendo em conta que o Estado concedeu à Vinci os dividendos de 2012, quando a gestão ainda era pública, e suportou o custo financeiro para cumprir o compromisso assumido no contrato de concessão, o preço da privatização (1.127,1 milhões de euros) foi inferior em 71,4 milhões ao oferecido e aceite (1.198,5 milhões).
O tribunal considerou que a venda da ANA à Vinci permitiu um monopólio por 50 anos num setor estratégico para a economia e recomendou ao Governo que pondere avançar com procedimentos para perceber se houve “falta de fidedignidade” de documentação processual determinante para a escolha da Vinci.
Os lucros da ANA obtidos até 2023 permitiram à gestora pagar em 10 anos o investimento de cerca de 1.200 milhões na concessão de 50 anos.
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